Hoje acordei de mãos flutuantes, a girarem em torno do ar, a dançarem sozinhas, sem mim. Eu fiquei a vê-las durante muito tempo, como se fosse um filme. Depois perdi-me nas correntes sinuosas; a manhã ameaçou brotar e eu ergui-me na escuridão do quarto silencioso. Tenho sempre a sensação de que o quarto é silencioso, de manhã, depois de ter sonhado em muitas cores e de ter escutado as conchas debaixo dos pés. Mas os sonhos alteram as ideias e fazem-nos conceber a realidade de forma estranha. Os gatos tornam-se tigres. As conchas são o mar e as suas distâncias. As formas de um rosto que inventei para ti não são perfeitas – são traços instáveis e mal delineados que se juntam em profundidades abstractas e os meus anseios não são de pedra. Os meus desejos não são de pedra. O rosto tem a carne, os músculos sob a pele – tem os olhos enormes que absorvem a claridade, tem os lábios esboçados em sorriso, os braços estendidos sobre o timbre. O som a formar dois rios distintos, desde os meus olhos até à queda livre sobre o chão, onde as gotas se desfazem com o esplendor do fogo-de-artifício. Sento-me e observo o sonho nas figuras aquosas, estendidas em silhuetas. Qual delas é a tua? [Aqui, as conchas são o mar e as suas distâncias.] Ali estás! O contorno é visível. O fogo-de-artifício resulta sempre que te quero encontrar – é como nos sonhos, mas de forma consciente. Basta vaguear nas utopias, acordar de mãos flutuantes e ficar a vê-las durante muito tempo, a dançarem sozinhas. Aí, quando nos perdemos nas correntes sinuosas, tudo se torna simples. Tudo é inteligível e é possível desenhar as formas do rosto, com a carne, os músculos sob a pele. Os segmentos de pó florescem e constroem-se; constroem-te – em traços instáveis e mal delineados que se juntam em profundidades abstractas. Eu gosto. Tenho o direito de gostar. Os meus anseios não são de pedra, nem os traços, nem os músculos sob a pele – os lábios esboçados num sorriso que ainda existe, dentro do silêncio, por entre o silêncio, sem nunca se exortar a ser transformado em algo tão fátuo como pedra.
sábado, 27 de outubro de 2007
Silhueta
Se eu tivesse existido há muito tempo, ter-me-ias dado a mão? Ter-me-ias tocado enquanto a luz se desdobrava? Ter-me-ias deixado ficar a ver-te quando adormecesses?
sábado, 6 de outubro de 2007
De Corpo e Alma
“Aus der Stille - aus dem Nichts
Eingetaucht in Dich
Erhalte mich in dieser Nacht ...”
Lacrimosa – Eine nacht in Ewigkeit
Porque me acordas todas as noites? Não que eu não queira ouvir-te abrir a porta e deitares-te ao meu lado, devagar. A cama estremece, suavemente; o teu cheiro antigo nos meus cabelos. Sabes-me bem e assustas-me – não chores. Eu deixo-te ficar aqui, deixo-te espalhar o teu cheiro antigo pelo quarto, até ser de manhã. Começo a amar-te. A sentir a tua falta sempre que abalo e não te trago comigo. Quero saber o teu nome, não que te chame; tu sabes sempre onde estou, mas para o suspirar no autocarro, enquanto não faço girar a chave na fechadura e entro em casa, o soalho sob os pés, o murmúrio no corredor despido.
Acho que ontem me abraçaste, espectro, meu amor. Aquilo que senti serem os teus lábios era o frio suspenso em redor – uma dormência inquieta [como tu]. Será possível termos consumado algo mais do que lamentos? A escuridão. Encontrar a paz na canícula que é o espaço que habitamos por momentos, enquanto nos tocamos de corpo e alma, de corpo para alma, até adormecer nos contornos refulgentes de um corpo que mal existe.
Volto mais cedo, amanhã. Quero aspirar mais de ti.
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