sábado, 27 de outubro de 2007

Silhueta

Se eu tivesse existido há muito tempo, ter-me-ias dado a mão? Ter-me-ias tocado enquanto a luz se desdobrava? Ter-me-ias deixado ficar a ver-te quando adormecesses?


Hoje acordei de mãos flutuantes, a girarem em torno do ar, a dançarem sozinhas, sem mim. Eu fiquei a vê-las durante muito tempo, como se fosse um filme. Depois perdi-me nas correntes sinuosas; a manhã ameaçou brotar e eu ergui-me na escuridão do quarto silencioso. Tenho sempre a sensação de que o quarto é silencioso, de manhã, depois de ter sonhado em muitas cores e de ter escutado as conchas debaixo dos pés. Mas os sonhos alteram as ideias e fazem-nos conceber a realidade de forma estranha. Os gatos tornam-se tigres. As conchas são o mar e as suas distâncias. As formas de um rosto que inventei para ti não são perfeitas – são traços instáveis e mal delineados que se juntam em profundidades abstractas e os meus anseios não são de pedra. Os meus desejos não são de pedra. O rosto tem a carne, os músculos sob a pele – tem os olhos enormes que absorvem a claridade, tem os lábios esboçados em sorriso, os braços estendidos sobre o timbre. O som a formar dois rios distintos, desde os meus olhos até à queda livre sobre o chão, onde as gotas se desfazem com o esplendor do fogo-de-artifício. Sento-me e observo o sonho nas figuras aquosas, estendidas em silhuetas. Qual delas é a tua? [Aqui, as conchas são o mar e as suas distâncias.] Ali estás! O contorno é visível. O fogo-de-artifício resulta sempre que te quero encontrar – é como nos sonhos, mas de forma consciente. Basta vaguear nas utopias, acordar de mãos flutuantes e ficar a vê-las durante muito tempo, a dançarem sozinhas. Aí, quando nos perdemos nas correntes sinuosas, tudo se torna simples. Tudo é inteligível e é possível desenhar as formas do rosto, com a carne, os músculos sob a pele. Os segmentos de pó florescem e constroem-se; constroem-te – em traços instáveis e mal delineados que se juntam em profundidades abstractas. Eu gosto. Tenho o direito de gostar. Os meus anseios não são de pedra, nem os traços, nem os músculos sob a pele – os lábios esboçados num sorriso que ainda existe, dentro do silêncio, por entre o silêncio, sem nunca se exortar a ser transformado em algo tão fátuo como pedra.

sábado, 6 de outubro de 2007

De Corpo e Alma



Aus der Stille - aus dem Nichts
Eingetaucht in Dich
Erhalte mich in dieser Nacht ...”

Lacrimosa – Eine nacht in Ewigkeit

Porque me acordas todas as noites? Não que eu não queira ouvir-te abrir a porta e deitares-te ao meu lado, devagar. A cama estremece, suavemente; o teu cheiro antigo nos meus cabelos. Sabes-me bem e assustas-me – não chores. Eu deixo-te ficar aqui, deixo-te espalhar o teu cheiro antigo pelo quarto, até ser de manhã. Começo a amar-te. A sentir a tua falta sempre que abalo e não te trago comigo. Quero saber o teu nome, não que te chame; tu sabes sempre onde estou, mas para o suspirar no autocarro, enquanto não faço girar a chave na fechadura e entro em casa, o soalho sob os pés, o murmúrio no corredor despido.
Acho que ontem me abraçaste, espectro, meu amor. Aquilo que senti serem os teus lábios era o frio suspenso em redor – uma dormência inquieta [como tu]. Será possível termos consumado algo mais do que lamentos? A escuridão. Encontrar a paz na canícula que é o espaço que habitamos por momentos, enquanto nos tocamos de corpo e alma, de corpo para alma, até adormecer nos contornos refulgentes de um corpo que mal existe.

Volto mais cedo, amanhã. Quero aspirar mais de ti.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

Um Diálogo


- Não compreendo. Explica-me porquê.

- Porque me alicia a falta de simetria na tua face. A claridade a emergir do olhar e a mover-se por todas as paredes. A harmonia que não existe quando discursas, descende, depois, nas certezas das mãos ao trespassarem o som, a rasgarem os céus, a gritarem bem alto para que a ninguém se evada a percepção daquilo que trazes. Assombroso. Afirmares-te grande. Seres mais do que isso – o enorme sorriso que trazes, com o qual rodeias o Mundo.

Quando amanheceu, não quis acreditar que quisesses que eu te explicasse tudo mais uma vez.

domingo, 9 de setembro de 2007


Ter-te em todos os lugares. Entre todos os silêncios. Ser tão pouco, perto da tua imensidão. Ouvir os teus dedos e ter a noite como testemunha.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

A Morte de W. A. Mozart


Oh boisterous heart,
Yet silenced by the shading;
Fingers in a sad timbre,
As a spring rose, fading.
Within the night and the sweat,
The whispers were read,
All assembled in a claim.
And a last melody again,
Recurring in a low tenor,
Sounding B or F major,
All through the stillness surrounding.
Astonishing, I would say.
[Swiftly, the echo of laughter,
Perceived before, that day.]
So, then, the eyes wide opened,
Gazing the quiet top,
Allowed a tender gasp –
Down, above and then stopped;
The hands lying on the sheet
As if a piano
[A distant cry of a soprano!]
Giving a last silenced tone,
Without a cry or a weeping moan,
Slowly expired, as the softness
Of a sonata,
The suddenness of a cantata,
Again listened, only tuned much stronger!
Oh, now his essence left, he lives no longer…

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Acho que sempre gostei de olhos grandes.


Acho que sempre gostei de olhos grandes. Os olhos como duas gotas enormes, sorridentes, brilhantes. Quando os teus emergiram, solenes, sobre a pele argêntea, foi como uma prosa que se traça devagar. Depois de um sorriso tão grande como os olhos e de uma risada tão rara como tu, nunca mais existiu silêncio. Deve ter sido por isso. Deve ter sido, não vejo que mais. Tinhas estampada no rosto mais do que simples alacridade. Era como se tudo à tua volta existisse com mais resplandecência desde que estivesses presente, ali, a observar tudo como a imensidão dos olhos claros, a sorrirem com a tua boca e a completarem tudo o mais. Os cabelos muito dourados; rebeldes, simples e desalinhados, quase tão simples como uma melodia sóbria, equilibrada. Era só ficar ali à espera que fizesses algo mais do que sorrir muito. Apesar de nada mais ter acontecido foi deslumbrante ver-te sentar após a dança, pegar no copo vidrado, cheio com o vinho da casa, a sorrir ainda mais, a mover as mãos enquanto falavas. Eu fiquei distante, a murmurar e a sorrir quando tu sorrias e a dizer-te baixinho todas estas coisas. Acho que sempre gostei de olhos grandes. Os olhos como duas gotas enormes, longínquos, para sempre.